A primeira volta
O trauma da austeridade ainda é grande. O resultado foi curto, mas a oportunidade é grande, porque o ciclo é novo. Dúvidas e certezas numa noite longa que ainda agora começou.
A noite eleitoral de ontem foi longa - também por culpa de uma freguesia de Sintra - mas ainda nem sequer chegou ao fim. Pelo contrário, só agora está a começar. Ontem foi a primeira volta de um processo que se iniciou e que, apesar do resultado, abre definitivamente um novo ciclo. Se vão conseguir aproveitar, isso já é outra história.
Antes disso, vamos aos vencedores. Há quatro. CDS, ADN, Chega e Livre, o que prova que estamos perante umas eleições muito estranhas. O CDS regressa ao Parlamento e por isso vence qualquer coisa. A coligação não tem um bom resultado, mas o CDS tem. Não acredito que, sozinho, voltasse a São Bento.
Já o ADN tem dez vezes mais votos, mas graças a um erro que já foi abordado na reflexão anterior. Não vale a pena encontrar-se explicações evangélicas, porque trata-se de um erro. Um não, cerca de noventa mil. E não concordo com quem diz que a culpa é da AD, porque escolhe este nome quando já existia ADN. O país tem instituições que devem prevenir estes riscos. A AD também tem alguma história em Portugal, como sabemos. Não nasceu ontem. Temos de perceber que há mecanismos para clarificar, como atribuir números às candidaturas. Isto não devia ter acontecido. É anedótico. Este fenómeno alterou o resultado final e podia ter comprometido a vitória de uma coligação. Para além disso, faz com que o partido que beneficiou com o erro passe a receber uma subvenção. Tal desfecho tem de merecer uma discussão muito séria e têm de ser apuradas responsabilidades.
Sobre o Livre, é claro que há um crescimento grande e conquistam um grupo parlamentar. No entanto, ficou aquém daquilo que eu esperava, que já apontava para uma mão cheia. Aposto, no entanto, que vai continuar a crescer, sobretudo se a liderança ao lado, no PS, se vier a comprovar instável.
E chegamos então ao Chega. Parece ser o grande vencedor da noite - descontando o ADN, porque aumentar dez vezes os votos não é para todos - mas será? Eu não acho. O grupo parlamentar do Chega pode vir a ser um grupo parlamentar pária. Está nas mãos dos moderados criar as condições para tal. Tem 48 deputados, que até podem vir a ser 49 com os votos das comunidades, mas isso pode não querer dizer nada. Ao cumprir a promessa de que ‘não é não’, Montenegro já começou a pôr o Chega de parte. E muito bem. Diria que, talvez consciente disto, André Ventura estava ontem muito nervoso e a forçar um entendimento à pressa. Penso que ele concorda comigo. Isto é muito, mas pode não ser nada e não tarda há eleições outra vez.
Sobre o resultado do Chega, é preciso respeitar-se este eleitorado. O partido deve ter um eleitorado base que não vai além dos 6 ou 7%, tudo o resto é um descontentamento que tem de ser ouvido. Digo isto há bastante tempo. Foi errada a estratégia dos fascistas, racistas e xenófobos. Este resultado é um cartão vermelho ao espaço moderado. É um protesto. Falamos de cerca de 800 mil votos (descontando o tal eleitorado base) que podem ser recuperados já nas próximas eleições, assim os sinais apareçam. Assim estes eleitores deixem de ser ignorados.
Para além disso, o crescimento do grupo parlamentar do Chega deverá demonstrar do que se faz aquele partido em termos de representantes, ou seja, o mínimo sucesso governativo por parte da AD, que seja capaz de alimentar alguma esperança mesmo que em poucos meses, fará os votos voarem do Chega num ápice. E é por isso que não estou - como vejo tanta gente - preocupado com o crescimento do partido de André Ventura. Percebo-o e não é de agora. A oportunidade de corrigir existe.
Vamos agora, e para terminar, ao resultado da AD e ao que esperar dele. Deixemos a esquerda, sobretudo o PS, para outra reflexão.
Creio que ainda se sentiu nestas eleições o peso da Troika. Os portugueses ainda têm medo e acho que legitimamente. O centro direita precisa de fazer um reset, precisa de um governo com outras características e de dar provas do que é capaz. Quando os adversários da AD, nesta campanha, voltaram a meter medo com os cortes, ainda por cima numa altura em que os partidos que a compõem pareciam questionar o sucesso económico do país - fazendo lembrar não só a austeridade defendida por Passos, mas também os discursos de Durão Barroso em 2002 -, muitos indecisos optaram pela cautela e das duas, uma, ou mantiveram o voto de protesto no Chega ou, os mais moderados, preferiram um PS em que provavelmente votaram em 2022.
Montenegro deve fazer todas estas leituras e perceber que dure o que durar este seu governo - é impossível cumprir o mandato - tem de dar estas provas. Tem de construir um programa de reconciliação com os portugueses e elaborar um orçamento amigável. Não se pode pôr em risco a consolidação orçamental, mas é preciso dar e aliviar. Se tal for conseguido, ou dentro de seis meses ou de dois anos - há um calendário constitucional que resulta de outros actos eleitorais -, a AD conquista uma maioria absoluta e está feito o tal reset. Esta é a estratégia que tem de ser seguida. Entretanto, o tal grupo parlamentar pária não contou para nada, não foi solução, ficará a resmungar e a empatar, até provavelmente provocar a queda, ajudado por um PS que também já disse que não tem de suportar governo algum da AD.
A AD tem por isso, nas suas mãos, uma grande oportunidade. Abriu-se um novo ciclo, mesmo que tenha sido por pouco. Há muitos indecisos e milhões de votos para disputar. Basta cruzar os resultados de ontem com os de 2022.
Quando refiro esta estratégia, não penso em cálculos partidários ou de poder, pois não me interessa nem um, nem o outro. Pelo contrário, penso que o país tem muito a ganhar com um centro direita forte, renovado, com outra estratégia. A direita moderada e liberal deve recuperar o seu espaço e reconquistar a confiança. É isso que está em causa e nessa medida o resultado pode ser bom. Um governo minoritário obriga a um esforço de reconciliação e provas, escrutinados depois num novo acto eleitoral, mais claro e sem fantasmas do passado que ainda espreitam. A vitória curta obriga a que o trabalho se concentre, nestes próximos tempos, nas pazes com o eleitorado - pelas falhas dos governos de Barroso e Santana, pelos excessos da austeridade e por uma oposição incompetente nos últimos anos - respeitando-se desde logo todos os compromissos que foram assumidos.
A confirmar-se este cenário, sabemos que não será inédito. Com algumas diferenças, foi o que aconteceu nos anos 80. Mas confesso que não sou muito dado a estas análises históricas, nem a comparações. Este é um novo processo e ontem foi a primeira volta. O contexto é diferente, as ameaças também são outras. É preciso olhar para a frente e perceber, independentemente das nossas convicções, que em democracia temos de ter alternativas e alternativas que a respeitem. Em muitos anos, esta é a primeira vez que sentimos isso. E nem o partido pária pode estragar a festa. É só mais um factor para não se poder falhar e para nos manter alerta.
Maravilha de texto. Cheguei a pensar que era eu a pensar! É isto e ando a dizer o mesmo dentro do PS. Ninguém ouve...