Condenados pela Inquirição
Não concebo as comissões de inquérito como um julgamento político, sem obedecer a códigos, feito por "juízes" que durante a manhã discutiram o IRS. Uma aberração perigosamente aplaudida por muitos.
Regressamos brevemente ao caso das gémeas para, mais uma vez, não falarmos sobre o caso das gémeas. O problema é nosso, exclusivamente nosso. Que os pais - todos - fazem o que podem e o que não podem para ajudar os seus filhos, isso não precisa de inquérito. A questão é, portanto, de Estado. Vamos lá
Há casos de elevada complexidade porque envolvem complicados esquemas de corrupção ou desvios, às vezes entre vários países, diversos ordenamentos jurídicos e inúmeros suspeitos. Compreende-se, nestes casos, o tempo da investigação - digo em teoria, porque às vezes também não se compreende - e as diversas diligências.
Mas este caso - conhecido como das gémeas - não tem complexidade alguma. A sua única complexidade é a total incúria na administração pública quanto aos processos. Numa tomada de decisão, seja ela que for, todos os passos têm de estar registados, com clareza, sempre assinalando quem toma a decisão e, quando se justifica, com que fundamento. Perceber, portanto, nesta história, se se verificou um benefício ou um favor é algo que devia ter demorado 48 horas. O Estado tem de ter a capacidade de, nestes processos, assinalar imediatamente uma irregularidade.
Tinham direito aos cuidados de saúde? Não tinham? Passaram à frente de alguém? Não passaram? Cumpriram-se os passos todos? Não cumpriram? Quem tomou a decisão? Saltou-se algum procedimento? O processo foi mais rápido do que outros análogos? Levou o mesmo tempo? Estas respostas deviam ter sido dadas, repito, em 48 horas, porque não se trata de uma investigação judicial. Isto é algo que o Estado, qualquer Estado, tem de estar preparado para fazer, porventura várias vezes ao dia, em diversas circunstâncias. É também assim que se garante a Lei Fundamental.
A complexidade desta história é mesmo, como se conclui, o desleixo. Não há um sistema eficaz e claro para garantir a defesa do interesse público. Permitem-se cunhas (ou a mera suspeita) e quando elas se tornam públicas lá se vai à procura da origem da cunha e não da origem do problema das cunhas. De todas elas. Neste ponto até ligamos com a reflexão de ontem, sobre a Justiça. Sempre a mesma dificuldade em atacar os problemas porque acabamos sempre a atacar as suas consequências. Isso não resolverá nada.
Aquilo que devia interessar ao Parlamento - e é para isso que deviam servir as comissões de inquérito na leitura que faço delas, mas isso é outra discussão -, era compreender os processos de decisão, o registo das sequências e os mecanismos para rapidamente impedir falhas. Ou pelo menos esclarecê-las, caso a falha já se tenha verificado, enviando-as de seguida para as instâncias próprias. É isto que nos deve interessar, mais do que tudo. É a diferença entre resolver um caso ou resolver todos.
Não concebo as comissões parlamentares de inquérito como um julgamento público feito por políticos que na parte da manhã estiveram a discutir IRS ou uma ponte. Acho as perguntas aberrantes, o tom inqualificável. Parece algo saído dos Monty Python. É um completo absurdo. Nelas não se procura verdade nenhuma, mas excertos para os noticiários, meros tempos de antena. O espectáculo de ontem, com a mãe das crianças, foi particularmente degradante.
Apesar do processo judicial - o tal que visa apurar se houve ou não uma falha e de quem é a responsabilidade -, era capaz de perceber a utilidade de uma comissão parlamentar de inquérito. Bastava que ela fosse para perceber o que é preciso fazer, nomeadamente ao nível da legislação, para evitar situações destas, que há com muita frequência, não é preciso ser-se Presidente da República (ou filho), e vai muito para além da Saúde. Mas não foi isso que vi, foi um julgamento político e na praça pública, sem obedecer a códigos. Uma aberração perigosamente aplaudida por muitos.
Pela matéria tratada, a demagogia está descontrolada. A família de brasileiros, aparentemente com dinheiro, ou com dívidas, com processos em tribunais, amigos de poderosos, do filho do Presidente da República… é mais uma telenovela da Globo. Alguém me dizia, no X, que esta família causou um “dano ao erário público de um montante superior ao que três casais da classe média não ganham durante toda a sua vida”. É um bom exemplo de um juízo toldado pela raiva. É demagogia pura. Também se podia dizer que o medicamento administrado - e que ajudou duas crianças - custou menos do que aquilo que foi pedido pela Autoridade Tributária a Fernando Santos, antigo seleccionador nacional, ou seja, um valor inferior ao de uma mera evasão fiscal.
Serve isto para se ver que a demagogia dá para tudo mas não presta para nada. A ideia é a República estar protegida contra favorecimentos de qualquer espécie, seja qual for a origem ou o destinatário. Quando eles correm, são os tribunais devem julgar porque é a eles que lhes compete fazê-lo, sempre ao abrigo dos códigos. Entretanto, o poder político (Governo) e o legislador (Parlamento) vão corrigindo as falhas que vão sendo detectadas, se preciso for através de inquéritos e apurando-se sempre responsabilidades políticas quando elas se justificam.
É assim que deve funcionar o Estado de Direito. Não se pode abdicar dos valores éticos e dos princípios democráticos quando eles são mais precisos e por isso muito mais difíceis de preservar.
Gabo-lhe a coragem de continuar persistentemente a investir tempo e paciência para escrutinar os reality shows que constituem a nossa "política" e a nossa "justiça ". Sei que vou morrer sem que veja qualquer verdadeira mudança para melhor, neste país. Claro que me podem sempre dizer que se ninguém falar, ou nada fizer, nada mudará. Bom... num canto de analfabrutos - onde me incluo-, e onde desde o 25 de Abril se vota em quem já provou que nada mudará a não ser para mais do mesmo ou pior ainda, é de herói. E eu não nasci para herói. Lamento. E cansa ver o esterco em que todos os dias andamos metidos. Vale a pena, num país onde tipos como este, onde Sócrates se passeia, se indigna e tem direito a coluna e opinião? Depois de ter feito o que fez, ainda ter quem o venere, o trate por "Sr. engenheiro" (pode ser por causa do engenho, que lá isso, tem) e o ache um herói e lhe cante loas? Mandou o país ao fundo e anda levado em ombros, aqui, na República das bananas da Europa. Cansa. E foi pelo cansaço, que o "animal feroz nos venceu a todos". Em alguns países, morreria atrás das grades. Vale a pena, se países que olhávamos por cima do ombro, porque conseguiam ainda ser piores do que nós, já nos ultrapassaram e nós cá estamos, a transmitir o BIG BROTHER na TVI 24 horas por dia, com um exército de admiradores a dar share naquele esterco?
A sério... tem toda a razão no que aponta e diz, mas... cá estaremos para o ano a falar do mesmo e a comer um pastel de bacalhau. Até quando se tenta apurar uma possível irregularidade, é apenas para daí retirar dividendos...
Triste.
Vou limpar o quintal. Está um vento do caraças e ficou tudo coberto de folhas.
Ar puro.
Precisa-se, urgente.
Abraço