Deixa o país trabalhar
Experimentem, um destes dias, fazer um mandato seguido, de quatro anos, de forma eficaz mas discreta. Assim uma coisa à base de respeitar um programa, levar a cabo umas medidas e ter sucesso.
A AD - Coligação PSD/CDS - é assim que se chama depois de perder parte significativa da sua força eleitoral com a saída de Gonçalo da Câmara Pereira… aliás, vamos começar por aí. Uma pessoa está a brincar, mas tinha alguma graça que a AD - Coligação PSD/CDS tivesse 8% e o PPM a maioria absoluta. Vamos imaginar que dois milhões de eleitores decidiam votar no PPM, só por pirraça - que até é um bom argumento para se votar no PPM, a pirraça. Não vejo outro.
Agora imagine-se Luís Montenegro, na noite eleitoral, a ligar a Gonçalo da Câmara Pereira, felicitando-o, depois de o acordar, pela vitória. E o líder do PPM, ainda estremunhado e sem perceber muito bem o que acabou de acontecer, a oferecer-lhe avenças em Arronches. No talho, por exemplo. - Sim, o Júlio diz que precisa de tratar da protecção de dados, porque tem as encomendas todas escritas à mão num papel e diz que não pode ser, toda a gente vê quem é que pediu o quê, podias ajudá-lo com o RGPD do talho.
É verdade que a graça de ver o PPM vencer as eleições legislativas com maioria absoluta é um pouco relativa e comportava riscos, mas lembro-me sempre do meu voto em Vitorino Silva - Tino de Rans -, numas presidenciais, e de como fiquei desiludido. Julgava estar a votar no candidato mais brincalhão, só mais tarde realizei que era o professor Marcelo. Estava enganado.
Mas a AD - Coligação PSD/CDS, dizia eu, tem novo hino. "Deixa o Luís trabalhar", assim se chama. Ora, quem é que se lembrou, numas eleições que se devem à suspeita de que o primeiro-ministro continuou a receber por biscates, de pedir para deixarem o Luís trabalhar? Isto só pode ter sido um unicórnio, daqueles novos, acabados de sair da fábrica. O eleitorado também já tem hino: “Mas trabalhar onde? Em qual delas? Estou confuso!”
Entretanto, é fácil perceber as ligações ao “deixem-me trabalhar” de Cavaco Silva, mas o Aníbal, na altura, pedia para trabalhar apenas no Governo e para o país, não se vislumbravam segundas intenções. Também se falava de uma bomba de gasolina, mas era do pai, que não o deixava fazer lá nada porque o filho nunca teve jeito para automóveis. Um dia, a chegar à Figueira da Foz, espetou-se com um Citröen novo na liderança do PPD/PSD.
Já este “Deixa o Luís trabalhar” moderno, de Montenegro, parece um cheque em branco. Deixa o Luís trabalhar, em geral. Vamos lavar o carro num sábado de manhã e na pré-lavagem, com a pistola de alta pressão, lá está o Luís. Pronto, o primeiro-ministro arranjou mais um trabalho, desta feita ao sábado, para ajudar com as contas. E desta vez não precisa de passar a pistola para as mãos da mulher e depois dos filhos, porque o povo já o deixou trabalhar.
Seja qual for o ângulo, este “Deixa o Luís trabalhar” é um erro. Aquele eleitorado que já votou na AD e que pode voltar a fazê-lo, mas sobretudo o eleitorado que não votou na AD e pode fazê-lo pela primeira vez, querem todos ouvir o Luís a pedir para governar. Trabalhar trabalham os filhos, que um deles até já tem o curso de gestão e o outro não é mais calão, creio que é apenas mais novo. No limite, o hino podia ter sido “Deixa o Luís governar e os pequenos trabalhar”. Isto sim, faria sentido.
Mas o mais relevante nesta história, ainda assim, nem é isso. É que o hino destas eleições devia ser “Deixem o país trabalhar”, porque se há aqui alguém mesmo prejudicado ao nível de não conseguir produzir como devia, não é nenhum governante, não. É o país, que está mais ou menos parado. O país é que devia poder ir fazendo as suas coisas, enquanto o poder político fazia as dele. Mas não consegue, porque o poder tem dado muitas chatices, muitas crises. Este já é um ano perdido. Mais um. Bem vistas as coisas, ainda estamos nos anos 90. E porquê? Aconteceu assim alguma coisa extraordinária? Nem por isso. Não chegou a ser um escândalo, foi mais uma gaita - em termos de ciência política, uma “gaita” é algo que deve ser evitado a todo o custo, pode ter consequências sérias, mas se todos quiserem não tem dimensão para bronca e muito menos para escândalo.
Mas lá estão todos nos debates, sem saber muito bem o que dizer. Os debates parecem aquelas conversas quando se encontra um vizinho no elevador. A alegria também parece mais ou menos a mesma. Já não se podem ver e discutiram isto tudo há um ano. Vão falar de quê? Até cheguei a pensar que abordassem os casos de arbitragem. Com efeito, nem sequer são debates políticos, é mais comentário ao que se tem passado e assim umas ideias soltas. Ideias novas. Giras. Viram na internet. E na Holanda. Há uma que foi no Canadá. Depois destes comentadores que se candidatam, aparecem outros e só falta arranjar-se um espaço de comentário ao comentário. - Penso que a Anabela Neves hoje esteve um pouco melhor, já deu meio valor a uma pessoa que não é do Partido Socialista, mas o Rui Calafate continua a analisar como ninguém, é como se os seus argumentos tivessem gel, perdão, mel.
“Deixa o Luís trabalhar”… é preciso ter lata. O Luís tem uma série de empregos e até precisou de passar empreitadas para a família, pois já não tinha mãos a medir. Não tarda os Montenegro estão a contratar, tal é o volume de encomendas. Deixa mas é o povo safar-se, isto é que devia ser um hino. Experimentem, um destes dias, fazer um mandato seguido, de quatro anos, de forma eficaz mas discreta. Assim uma coisa à base de respeitar um programa, levar a cabo umas medidas e ter sucesso. Estilo o país crescer, a riqueza distribuir-se, sentir-se melhorias na Justiça, ver investimento público e privado, dinamizar-se sectores, serviços públicos de qualidade. Nada de especial. Tentar só, neste país que não fez mal a ninguém, ter quatro anos de assinalável progresso, que se consiga ver, cheirar e tocar.
Para já, à falta de melhor alternativa e depois da ideia que me surgiu no início destas linhas, penso que o meu voto vai para o PPM. Pela pirraça, sempre, mas sonhando também com um regime marialva. Se é para levarmos com o nosso fado, ao menos que seja com estilo.
Meu caro Zé Pedro, gostei imenso da sua crónica, especialmente por ter focado um ponto de especial e capital importância, que são os casos da arbitragem. Lamentavelmente não o desenvolveu, provavelmente porque os próprios coisos, os políticos, também não estão para aí virados por ser uma causa popularucha. Nem o coiso, o Ventura, que miseravelmente se esquece dos tempos em que era pobre. De espírito e de corpo feito contra os apitos, declaro, pois, que existem casos da arbitragem e que os duzentos ou trezentos malucos que são árbitros deviam continuar fechados na sala de isolamento do Júlio de Matos. Então é que eu ia ao futebol!
PS: aquela do "pobre. De espírito" saíu-me bem!
Lá estás tu a pedir cenas impossíveis. Um governo eficaz e discreto... Tá bem, tá.