Nada de especial, só para alarmar
A minha ideia é alarmar ainda um pouco mais a população. Sei que já estamos com bons níveis de stress, virou-se a página da pasmaceira, mas eu trago aqui mais um risco que não sei se estamos a ver.
Ainda estamos a sentir as réplicas da noite eleitoral de domingo, o que é perfeitamente natural, porque foi um grande abalo. Há muitas teorias, como em qualquer desastre. Os mirones cercam o aparato e lançam os seus palpites. Com as mãos nos bolsos e a falar baixinho para não perturbar as operações, lá vão dizendo uns aos outros o que viram.
Entretanto, o Presidente da República cumpre a regra constitucional de fingir que ouve os partidos e nós temos, portanto, de arranjar alguma coisa para nos entretermos. É verdade que já há um ou outro acontecimento de grande relevância política. Por exemplo, uma moção de rejeição a um governo que ainda nem sequer existe, nem se sabe ao certo quem o formará. Uma ideia do PCP. É que ainda nem há parlamento para apresentar a moção. Para se ter uma ideia, isto é como pedir o divórcio sem se estar casado, nem existir cônjuge. Um amigo liga a outro para lhe comunicar que se vai divorciar. O amigo reclama que nem sabia que ele se tinha casado. Ao que o primeiro responde que não casou, mas vai-se divorciar quando se casar, porque sempre escolheu mal, não será agora, nem precisa de a ver. Haverá divórcio.
Depois também há a reunião pedida pelo Bloco de Esquerda aos seus parceiros naturais, através de uma comunicação pública, pelo que não sei se a ideia não é sermos nós a marcar. Pelo menos parecia como aquelas pessoas que dizem “acho que nos devíamos juntar todos, não nos vemos há tanto tempo”, na esperança de que sejamos nós a fazer o grupo no WhatsApp. O Bloco de Esquerda quer partir para a revolução, já se percebeu - é uma forma de celebrar os 50 anos do 25 de Abril, ou seja, com outro -, mas nesse caso as reuniões costumam ser clandestinas. Apelo por isso ao respeito cénico que uma revolução ainda merece. Wokismo, mas não tanto. Qualquer dia convoca-se uma revolução nos termos da Constituição.
Mas o primeiro acontecimento político até foi logo na segunda-feira, com André Ventura a suplicar por um acordo. Tem-se falado muito na necessidade de respeitar o eleitorado que votou no Chega, eu também já defendi o mesmo. Mas este argumento está a tomar umas proporções tais que, pela primeira vez, a necessidade de respeitar um eleitorado é mais exigida aos outros do que ao próprio partido. Aliás, André Ventura, na CNN, trocou praticamente todo o seu programa por um acordo de governação. E assim, não terá respeitado o eleitorado que votou nele. Enquanto isso, os outros parecem obrigados a fazê-lo, naquilo que se pode considerar mais um sucesso da lábia de Ventura. É preciso, por isso, ter calma. O primeiro a espezinhar o tal milhão parece ter sido o líder do Chega. Quem diria que um líder populista só queria mesmo o poder e por ele não conserva uma única convicção, nem mesmo uma daquelas que já não tinha!?
Seja como for, não era sobre nada disto que eu queria falar. Aquilo que pretendo, hoje, não é discutir nenhum acontecimento destes, por melhores que eles sejam. A minha ideia é alarmar ainda um pouco mais a população. Sei que já estamos com bons níveis de stress, virou-se a página da pasmaceira, mas eu trago aqui mais um risco que não sei se estamos a ver. E está relacionado com o crescimento do populismo, está.
Como percebemos com estas eleições, há uma certa elasticidade no eleitorado, isto para além da capacidade que parece existir de se acordar uma parte que estaria eventualmente embalsamada. O resultado é um crescimento exponencial de votos num qualquer projecto político, ou apenas numa figura - talvez este aspecto seja mais interessante para a nossa análise; ou seja, interessa-nos aquilo que testámos, nestas eleições, em relação à capacidade de uma votação expressiva numa pessoa, neste caso um líder populista. O Chega não apareceu ontem, é verdade, mas o crescimento rebentou a escala para partidos com a dimensão que tinha.
Isto para chegar onde? Às eleições presidenciais de Janeiro de 2026. Tudo pode acontecer. A política, depois deste último domingo, transformou-se. Haverá um antes e depois disto. O populismo instalou-se e até melhorar, vai piorar. Quando começarem os trabalhos parlamentares, estou certo que o canal do parlamento vai liderar todas as audiências, mesmo em horário nobre. Os programas de humor vão acabar, porque se tornam inúteis. Mesmo o futebol, só ao fim-de-semana é que terá pessoas para ver.
Para este descalabro, não conto apenas com as novidades que vão estrear, mas também com os parlamentares mais experientes que acabarão por, inevitavelmente, participar no espectáculo. Tal já acontecia, de resto.
Ora bem, agora imagine-se que, nessas presidenciais, aparece um candidato ou uma candidata com grande mediatismo. Uma vedeta enorme. Apoiada, também, por um partido populista. Estou aqui a pensar alto. Num cenário meramente académico. Imagine-se alguém com muitos “seguidores” e grande influência. Que vem de fora da política. O que será que pode acontecer? É isso mesmo que pode acontecer: a eleição. Algo que, até há uns anos em geral e até domingo em particular, parecia difícil ou mesmo excluído.
Problema: Ao contrário do que alguns pensam, o Presidente da República não é um boneco de cera nem uma mascote da República. Tem bastantes poderes. E até tem aqueles que às vezes parece não ter, porque a nossa lei dá sempre azo às mais diversas interpretações. Até quem as escreveu discute sobre o que querem dizer. Isto é um facto. Parte do estudo do Direito passa por tentar perceber qual é o Professor que tem razão e depois seguir essa escola. Há constitucionalistas para todos os gostos.
Se olharmos aos poderes do Presidente da República, estamos praticamente no campo da otorrinolaringologia, porque ele só tem de ouvir. Tem de ouvir os partidos, tem de ouvir o Conselho de Estado. Por exemplo, agora está a ouvir os partidos. Certo. Mas depois toma a decisão, independentemente do que ouviu dos partidos. E repare-se que a decisão que ele toma tem coisas em consideração, seja lá o que isso for. Veja-se a letra do número 1 do artigo 187º da CRP: “O Primeiro-Ministro é nomeado pelo Presidente da República, ouvidos os partidos representados na Assembleia da República e tendo em conta os resultados eleitorais.”
O Presidente da República tem de ouvir e depois tem de ter em conta. Eu diria, com todo o respeito, que o senhor Presidente da República pode nomear, para Primeira-Ministra, a líder do PAN. Inconstitucional não era. Primeiro, ouviu os partidos, depois teve em conta os resultados eleitorais e o PAN teve uma votação expressiva, até diziam que não ia eleger.
Claro que o Governo não passaria no Parlamento. É assim que funciona o nosso sistema. No entanto, esse é outro poder do Chefe de Estado: Dissolver a Assembleia da República, bastando para isso, novamente, voltar a ouvir pessoas, observar algumas coisas e ter outras em conta. Uma delas, por exemplo, é não poder dissolver a Assembleia nos seis meses posteriores à sua eleição (sua, da Assembleia) e nos seis meses antes do fim do seu mandato (seu, do Presidente). Mas temos também os governos de iniciativa presidencial, uma coisa que parece do passado - anterior à revisão de 82 -, mas eu diria que voltamos ao campo das interpretações. E os limites continuam sempre a ser os de ouvir, observar e ter em conta.
Não sei se consegui alarmar a população, mas era esse o meu objectivo. Diria que é preciso ter alguma atenção a estes pormenores. Não temos válvulas de segurança suficientes para garantir o Estado de Direito democrático, até porque, num cenário destes, com o mínimo de controlo dos órgãos de poder, alcançar-se uma maioria de 2/3 capaz de operar revisões constitucionais não parece, de todo, impossível.
A boa notícia é que, nestes casos, é sempre tudo feito para nosso bem, justificando-se assim os meios. O país tem tido algumas surpresas, daquelas com muito aviso, mas eu diria que a próxima grande surpresa pode estar guardada para as presidenciais. Não se subestime nunca o poder do populismo, do mediatismo e a paixão do povo por ambos.